segunda-feira, 16 de maio de 2016

Memórias do Colégio Bom Conselho




Por Milena de Andrade

Sempre tive medo do esquecimento. Desapegar do passado não é uma das minhas habilidades. Passar por algo que marcou determinada fase da minha vida é uma experiência nostálgica sobrenatural, é um fenômeno capaz de transportar-me para o passado em questão de segundos. Imagens em preto e branco, o tempo volta, a história se repete – uma experiência semelhante ao flash temporal dos filmes. É assim quando passo por este prédio, o Asylo das Orphas, que funcionou de 1877 a 1935.
O prédio ainda existe, no bairro de Bebedouro, em Maceió. As suas contas não vão bater: eu não sou da década de 30, tampouco do século passado. O Asylo das Orphas faz parte da Sociedade Nossa Senhora do Bom Conselho e, na época, existiam o extinto Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho (CBC), o Asylo, o Convento e, diziam os mais antigos, que também fora um abrigo para refugiados da guerra. Minha vivência com este prédio antigo, que se confunde com a história de Maceió, é como aluna do Colégio Bom Conselho. Naquele tempo, anos 90, ele ainda era gerido pelas freiras da Sociedade.
O prédio do CBC é um dos mais antigos da capital alagoana, sua arquitetura é belíssima, com toques de história e mistério. Ele tem umas espécies de passagens secretas e marcas estranhas que sempre serviram de alimento para a mais fértil imaginação. Haja imaginação! Mas essa imaginação não acontecia por acaso, vez ou outra, passeando normalmente pelos espaços, os alunos encontravam parque secreto desativado, séries de banheiros escondidos por trás de muros altíssimos, passagens secretas por trás do palco, lápides no altar da capela. Lembro-me do palco de piso de madeira, no começo do pátio, com duas escadas laterais. Os meninos levados ( inclusive eu) conseguiram entrar por umas tábuas quebradas embaixo do palco e lá vimos uma parede velha e com umas brechas. Obviamente, brechamos e vimos um parque infantil velho e desativado, parecia um parque fantasma. Achamos a série de banheiros por trás de um paredão e parecia uma espécie de vestiário. Disseram para mim que era da época do abrigo de refugiados. As freiras não tocavam no assunto e os mistérios só aumentavam, as histórias seguiam o mesmo compasso. Tinha um laboratório de ciências sinistro com esqueletos e vidros com partes do corpo humano e fetos de bebês mergulhados no formol – era sensação entre os alunos, mas não podíamos chegar perto. Reza a lenda que o esqueleto foi de um dos professores da escola que havia morrido, mas essa história eu sei que é mentira - eu acho.
Prédio enorme, repleto de encontros e desencontros que eu não quero esquecer. Éramos recebidos por um belíssimo jardim. As flores formavam o nome Bom Conselho. Sobre as primeiras salas de aula, era possível ler as frases de Legião Urbana e Pitágoras "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã" e "Educai as crianças, para que não seja necessário punir os homens". Lindo. Mas havia umas construções estranhas dentro do CBC, que não faziam sentido algum, a exemplo de um espaço que parecia uma jaula gigante. Era tudo muito lindo e mais lindo ainda era imaginar vidas passadas que ocuparam o CBC antes de nós. Depois da quadra, tinham árvores altas e bancos e por trás deles havia o mangue, um privilégio para poucos. A quadra foi palco para torneios inesquecíveis, grandes competições. As melhores equipes de vôlei e handebol de Alagoas eram do CBC. Assisti a muitos jogos sentada na escadaria/arquibancada para torcer pelo Bom Conselho.
Havia também um grande refeitório que também foi palco de competição, mas desta vez uma competição mais violenta, que exigia um pouco mais dos estudantes. O refeitório e suas guerras de comida, vencer significava sair com a farda intacta, sem manchas de suco ou achocolatado, e os cabelos não podiam trazer sinais do cardápio macarrão, arroz e carne ou sopa de letrinhas. Era muito difícil, mas lembro-me de ter erguido a taça algumas vezes. Bom, a comida era muito boa, na época das freiras.
O extinto Colégio Bom Conselho já foi o melhor do nosso estado, as freiras do Asylo comandavam tudo. Impecável da farda ao ensino, pais e mães dormiam em filas durante a madrugada para garantir uma vaga.
Entrávamos em ordem assim que chegávamos para rezar e receber nossos professores. Diariamente, dos alto falantes de dentro das salas de aula, ouvíamos as irmãs fazendo suas preces e nos chamando para o hasteamento da bandeira e para cantar os hinos do Brasil, de Alagoas, de Maceió, da Bandeira e até da Marinha. Nele estudaram atletas, políticos, artistas, grandes empresários, gente famosa de Alagoas e gente de fora.
Eu cheguei para estudar no CBC em seus últimos anos de vida, segurei sua mão no suspiro final. Fechei os enormes e pesados portões que permitiram a partida das freiras e fui os olhos tristes e afogados que viram pela última vez aqueles hábitos cinzas. Vivi o fim do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho e o nascimento da Escola Estadual Nossa Senhora do Bom Conselho. Vi a chegada do poder público com todo seu poder de destruição de sonhos. Vi um império sendo destruído e nada pude fazer. Hoje, eu me limito a olhá-lo por fora e a receber toda carga de nostalgia que ele me proporciona. Busco coragem para ultrapassar esses muros novamente. Sei que será possível ver e ouvir o passado porque o CBC sempre foi feito de mistérios. Assustadoramente, sempre.


Homenagem ao eterno Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho e a todos os seus alunos, professores, órfãs, freiras, padres, jardineiros, todos que têm uma história do CBC para contar.